Para que fazer ciência? Provavelmente, o alívio sentido ao saber da criação de vacinas eficazes contra o SARS-CoV-2 (em tempo recorde, diga-se de passagem) foi a maior evidência da importância da ciência para a sociedade contemporânea. Mas isso é pouco! É provável que tenhamos epidemias e, talvez até pandemias, acontecendo com mais frequência em função dos impactos ambientais antrópicos.
O desmatamento de florestas, o derretimento de geleiras, o uso indiscriminado de antibióticos e pesticidas na produção de alimentos, dentre outras coisas, desregula um ecossistema sensível. E para manter a produção de tudo isso, usamos energia gerada a partir de combustíveis fósseis, intensificando as mudanças climáticas. Sabemos da Lei da Conservação da Matéria1 há mais de dois séculos, mesmo assim, insistimos em transferir carbono do solo para a atmosfera, a despeito do delicado equilíbrio do clima no planeta. Conhecemos a toxicidade de diversos gases resultantes da produção industrial, mas o “progresso” é prioridade. Se o oxigênio não faltar por conta de infecções respiratórias, chegará ao pulmão acompanhado de alguns gases não muito amigáveis ao nosso trato respiratório. Isso se sobrevivermos às catástrofes climáticas cada vez mais frequentes ou à toxicidade dos agrotóxicos contidos em nossa comida e água.
Sabe quem contribuíu para o desenvolvimento tecnológico que nos trouxe até aqui? Quem desenvolveu os antibióticos? Os pesticidas? As armas? Cientistas. E sabem quem alerta há décadas sobre o mau uso dos recursos naturais? Quem desenvolveu medicamentos? Quem propõe novas tecnologias sustentáveis para geração de energia? Quem produz vacinas? Cientistas também! O problema não está na ciência, mas na aplicação do saber científico. Enquanto alguns propõem alternativas ao uso de substâncias prejudiciais ao meio ambiente, outros procuram tecnologias que permitam a colonização de outros planetas quando deixarmos a Terra inóspita.
De qualquer modo, a população já está convencida de que a ciência é importante para a sociedade. Ao menos a maior parte dela. Mas sua compreensão sobre o tema, pára por aí. Quem nunca teve que estudar para uma prova de química se perguntando qual a razão de estudar algo que “não vai usar”? E é aí que está o engano! E se você não usa, deveria. Não compreender como a ciência e o pensamento científico funcionam promoveu o fortalecimento do negacionismo, resultando em incontáveis mortes evitáveis. Mas se para alguns é difícil perceber a importância da ciência em meio ao desespero por um medicamento que nos salve de um vírus mortal, menos ainda será notada sua relevância na prateleira de estabelecimentos comerciais ou nas decisões sobre políticas de saneamento básico e licenciamento ambiental. O Brasil dos últimos quatro anos não ouviu a comunidade científica antes da tomada de decisões políticas. Ao contrário, puniu cientistas por fazerem o seu trabalho, seja na área da saúde ou ambiental.
Saiba, contudo, que qualquer pessoa pode usar mais ativamente o conhecimento científico. Estudar ciências transcende memorizar nomenclaturas, fórmulas matemáticas e tabela periódica. Aprender ciências ajuda a desenvolver o raciocínio lógico, interpretar padrões em fenômenos naturais e criar modelos para compreender o mundo. Esse conhecimento vem acompanhado de maior poder de decisão sobre a própria vida. Infelizmente, pensar cientificamente apenas no campo individual é, geralmente, limitado a observar rótulos de produtos comercializáveis e mudar hábitos de consumo em prol de uma vida mais saudável e sustentável. Isso é ótimo e necessário, mas nada se compara ao que somos capazes coletivamente. Enquanto ações sustentáveis permanecerem no campo individual, seu efeito global não passará de cócegas. Precisamos pressionar nossos representantes políticos a governarem com base em evidências científicas e em benefício da população e do meio ambiente. Imaginem o potencial de uma sociedade cujo conhecimento científico é aplicado de modo a priorizar a vida em vez do lucro!
Exceto pelo período medieval, vulgarmente e não à toa conhecido como “Idade das Trevas”, o pensamento científico nunca foi tão desmoralizado a ponto de ser colocado à prova com base em opinião em vez de evidências. Os atomistas só tiveram sua hipótese fortalecida após o estudo sistemático do comportamento da matéria entre os séculos XVIII e XIX2. A partir de então, nossa capacidade de manipular a matéria para nos favorecer foi impulsionada como nunca antes na história desse universo, a qual aliás só é conhecida graças à produção científica. Vale lembrar que para o tal desenvolvimento sustentável ser possível é necessário termos ciência da relação diretamente proporcional entre responsabilidade e poder (sim, porque conhecimento é poder). O conhecimento sobre a conversão de energia térmica em energia mecânica de forma segura e eficiente possibilitou a invenção da máquina a vapor, que marcou a história com a primeira revolução industrial. Desde então, o “progresso” tem sido altamente dependente do desenvolvimento científico e tecnológico. Armas químicas foram desenvolvidas com o objetivo de “combater o inimigo” na Primeira Guerra Mundial, deixando como herança técnicas usadas para aumentar o rendimento da síntese de amônia, essencial à produção de fertilizantes3. A linguagem da matemática aplicada ajudou a combater os nazistas na Segunda Guerra Mundial e favoreceu o advento da ciência da computação4. A descoberta do mecanismo de reações nucleares e emissão de partículas radioativas possibilitou a geração de energia elétrica e o desenvolvimento da medicina nuclear, mas também foi e ainda é usada como arma5. Uma das armas químicas mais cruéis, o agente laranja, foi usada nas matas vietnamitas pelos EUA. Depois, passou a ser um dos herbicidas mais utilizados pela agroindústria6. A corrida espacial no período da Guerra Fria teve seu ápice quando o homem pisou na lua, e seus impactos se propagam até hoje nos computadores e celulares que usamos cotidianamente. Ao mesmo tempo que a revolução tecnológica viabilizou a democratização do conhecimento, o aumento da nossa capacidade de comunicação nos tornou ainda mais prejudiciais ao nosso próprio ecossistema.
A ciência não é responsável por nada disso, mas sem ela não estaríamos aqui, tampouco seremos capazes de mudar estilos de vida e sistemas políticos. Precisamos reconhecer a ciência como uma construção humana e, portanto, sujeita à visão de mundo de quem faz e de quem financia a produção científica. Enquanto permitirmos que o conhecimento científico se concentre nas mãos dos poucos interessados em manter o status quo, não há perspectiva de mudança. É urgente a ampliação e divulgação do conhecimento científico, pois uma população com alfabetização científica não se torna refém de manipulações, desinformações e teorias da conspiração. Sem a percepção de padrões e a capacidade de observação criteriosa, estamos fadados a repetir os erros de nossos antepassados ou a reinventar a roda. O mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indica que não há mais tempo para reinventar a roda, menos ainda podemos voltar no tempo e reverter os danos. A Segunda Lei da Termodinâmica7 é inexorável e o aumento da desordem é inevitável.
São Paulo, 07 de novembro de 2022.